Tributo à minha mãe
Por Nara Maria Müller
Minha mãe nasceu na localidade de Maragatos, no dia 17 de julho de 1935. Maragatos fica localizada no interior de São Francisco de Paula, com parte pertencendo à Rolante, no Rio Grande do Sul.
Quando ela completou 14 anos
de idade, seu irmão mais velho lhe disse que a infância tinha terminado e que,
a partir de agora, ela teria que trabalhar na roça, como os demais irmãos. Aos
15 anos, uma prima que era freira a convidou para ir morar na cidade de Rolante
e trabalhar com ela, no hospital daquela cidade. Autorizada pelos seus pais e sob
a responsabilidade da prima freira, a jovem Elly Theves deixou Maragatos para
trás, aos 16 anos de idade.
Alguns meses depois, mudou-se
para Taquara, indo trabalhar no então hospital das freiras: o Sagrada Família.
Trabalhou como auxiliar de
serviços gerais e como auxiliar de enfermagem. Foi um tempo difícil,
mas minha mãe sempre foi doce e carismática. Aprendeu muitas coisas e fez boas
amizades.
E foi durante esse período que
ela conheceu meu pai - Plinio Américo Müller, num baile de carnaval, em
Taquara. Foi amor à primeira vista e os dois se casaram em 18 de maio de 1957.
Meu pai trabalhava como vendedor/balconista numa ferragem e, quando eu nasci,
em janeiro de 1959, ele decidiu que voltaria aos estudos para poder dar uma
vida melhor aos filhos. Meu irmão, Eraldo nasceu em novembro de 1960.
Meus pais viviam com poucos
recursos financeiros, mas com muito amor e muitos momentos felizes. Sempre foram
aventureiros, no sentido de aproveitarem as oportunidades que a vida lhes
oferecia. Me recordo das muitas vezes em que, logo após o almoço, meu pai nos
convidava para dar uma voltinha de carro e minha mãe deixava tudo sobre a mesa,
coberto por uma toalha. A louça só era lavada na volta do passeio.
Quando eu completei 15 anos, e concluí o Ensino Fundamental, meu desejo era estudar à noite e trabalhar durante o dia. Meu pai não permitia porque eu era muito novinha para estudar à noite. Minha mãe decidiu fazer o Ensino Médio comigo. Eu achei muito legal, mas não sabia da real intenção dela: fazer com que meu pai me permitisse estudar à noite. Íamos os três juntos para o Colégio Santa Teresinha, meu pai era professor e nós duas, alunas.
Nos formamos em 1977 e meu pai foi nosso paraninfo. Que momento lindo para relembrar sempre!
Viveram juntos por 63 anos e 7 meses e constituíram uma família maravilhosa, com 4 filhos: eu, Eraldo, Ronaldo, Miguel, 4 netos: Douglas, Lucas, William e Bernardo, 2 genros, 3 noras (sim, os “ex” sempre moraram no coração da minha mãezinha e ela sempre morou nos corações deles).
Em novembro de 2017 minha mãe sentiu uma tontura e teve um breve desmaio, na cozinha de sua casa, em Taquara. Meu irmão Ronaldo e minha cunhada Martha a levaram ao cardiologista e ela foi diagnosticada com arritmia cardíaca e possível mini AVC. Naquele período eu estava morando no Canadá, com meu marido Iuri. A família só me contou sobre esse fato, quando ela estava melhor e com consulta marcada no Hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre, para o início de 2018.
A mãe foi internada no dia 23
de janeiro e ficou por alguns dias no hospital Ernesto Dornelles. Depois de uma
bateria de exames, fizeram um procedimento para normalizar o ritmo cardíaco,
mas não funcionou. Teve alta e soube que teria que continuar tomando os
medicamentos para arritmia e o anticoagulante, para sempre. Aos poucos ela foi
recobrando a normalidade, o apetite voltou, com o apoio dos meus irmãos,
cunhadas e da esposa do meu ex-marido. Além, é claro, dos netos. Minha agonia por
estar longe, aos poucos amenizava. Voltei para o Brasil em julho de 2018.
Eu costumava brincar com a mãe
que ela recobrou sua felicidade depois que eu voltei do Canadá e ela concordava
no mesmo tom de brincadeira. Era uma mulher alegre, amável que conquistou os
corações de todos os felizardos que tiveram o prazer de conhecê-la.
Meu marido e eu concordamos em
aproveitar cada minuto com ela e fizemos vários passeios, nós 4: meus pais,
Iuri e eu. Fomos para Chuí, onde eles puderam rever lugares que tinham visitado
há muitos anos, fomos a Laguna e Garopaba, em Santa Catarina e eles se
apaixonaram por Garopaba. Voltamos a Garopaba para passar alguns dias com eles
numa casa muito simples, à beira do mar e aos pés da igreja de São Joaquim. Tudo
era alegria, tudo era bom!
Meus pais eram nossa melhor
companhia para passeios, jantares e almoços em qualquer lugar e em qualquer
situação.
Passamos juntos o final do ano de 2019, em Aparecida, São Paulo. Foi a realização de um sonho do meu pai, conhecer a Catedral de Nossa Senhora Aparecida e minha mãe ficou encantada por podermos estar lá. Ela adorou o museu de cera, com aquelas imagens tão semelhantes às pessoas que ela conhecia pela televisão.
Minha mãe sempre valorizou a nossa linda família, sempre nos considerou um exemplo de família para o mundo tão vazio de valores humanos. Ela dizia: “Eu tenho uma família muito bonita!”
Quando a gente falava em religiões, solidariedade e amor ela sempre dizia: “Tudo o que eu sei é que devemos ser muito bons nesta vida”.
À dona Elly todos recorriam
para que os incluísse nas suas orações “fortes”, pois sabiam que ela era ouvida
por Deus. Ela rezava todos os dias, uma série de Pai Nosso e Ave Maria pelas
intenções de toda a família e amigos.
Anualmente, nos reuníamos com seus
parentes: irmãs, sobrinhos, sobrinhos netos – todos descendentes dos meus avós
maternos: Albino e Maria Theves. Esses encontros foram idealizados pelo meu pai,
junto com um dos meus primos. Queriam se encontrar em momentos de festa e não
apenas em velórios e enterros. O último encontro dessa grande família, que
reunia em torno de 100 pessoas, aconteceu no dia 15 de março de 2020, um dia
antes de ser declarado o distanciamento social por causa da pandemia do novo
coronavírus.
Ao longo de 2020, minha mãe e todos nós nos cuidamos muito para não contrairmos o novo coronavírus. Queríamos preservar a saúde dos meus pais e, é claro, sairmos vivos ao final da pandemia. Meus pais e meu irmão Eraldo tinham decidido ficar morando na casa de praia, em Imbé.
Proporcionamos cirurgias de
catarata, com implante de lentes super especiais – um olho em 13 de maio e
outro olho em 16 de setembro.
No dia 23 de setembro meu pai
me chamou porque a mãe estava fraca e tinha caído na cozinha. Iuri e eu
chegamos lá, à tardinha e ela estava sentada na sala, com uma certa confusão
mental. Lembrei que o quadro descrito pela família em 2017 era semelhante e,
imediatamente, a levamos para o hospital de Osório, onde a internaram com
infecção urinária.
A reclamação da minha mãe era
de dor na lombar e coceira. O que mais a incomodava era a coceira no corpo
todo.
Começaram a tratar da infecção
e deram cortisona para aliviar a coceira. Ela já tinha ido à dermatologista, endocrinologista,
cardiologista, em Imbé e Tramandaí. Como o Iuri e eu moramos em Tramandaí, eu
pude dar toda a atenção necessária aos meus pais, especialmente, à minha mãe.
Rapidamente, minha mãe foi
melhorando e, como os olhos estavam 100%, estava lendo um livro sobre os botos
de Imbé. Estava muito feliz e animada. Ficamos no hospital por 7 dias, até
terminar o tratamento com o antibiótico e estar com a infecção urinária debelada.
A dor na lombar continuava então eu a levei ao traumatologista, em Tramandaí. Ela tinha dificuldades em ficar sentada por causa da dor e da alergia que fazia sua pele ficar ainda mais frágil. O médico pediu um RX, que fizemos na clínica mesmo e o resultado mostrou uma fratura na lombar. Ele pediu uma tomografia e receitou um medicamento para dor.
A dor foi diminuindo, mas as
coceiras não. Marcamos a tomografia para 22 de outubro e, nesse dia minha mãe
estava muito mal. A pele escamada, com prurido aquoso, dificuldade para
caminhar e sentia muito frio. Esse frio já vinha sendo sentido há alguns meses.
A pele machucada parecia queimada e quente e aquele frio terrível.
Eu a acompanhei na tomografia
e, em seguida, nos dirigimos a Porto Alegre, para tentar uma internação no
Hospital Ernesto Dornelles, que oferece mais recursos do que os hospitais do interior.
Foi internada e eu fiquei com
ela por 10 dias. Estava com infecção no sangue, por Estafilococos Aurius.
Diagnosticaram fragmentos de osso quebrado da lombar na medula, o que estava
comprimindo seus nervos e dificultando seu caminhar. Por causa da pandemia, a
dermatologista do hospital estava afastada e minha mãe não teve esse
atendimento. Tudo que ela queria era curar a coceira. O resto, para ela não
importava. Mas os médicos estavam empenhados em curar a infecção, monitorar o
coração e em tomar alguma providência em relação à coluna.
Minha mãe me pediu: “Narinha,
se eles não curarem minha coceira, eu não quero mais viver”. “Não quero
cirurgia, não posso viver assim”. Eu cheguei a postar no Instagram e Facebook a
necessidade de ter um alergista que viesse atendê-la no hospital, mas nenhum desses
profissionais prestava esse serviço.
A cardiologista fotografou o
corpo da minha mãe e mandou para a dermatologista afastada. Essa prescreveu uma
medicação de alívio e um creme para passar no corpo.
Foram 10 dias com minha mãe no
hospital. Ela não queria outra pessoa para acompanhá-la, a não ser eu porque
sou a única filha mulher. Ela se sentia constrangida com meus irmãos, ou cunhadas.
E eu me senti bem em poder estar com ela desta vez, já que estava tão longe, em
2018.
No dia 01 de novembro minha
mãe teve alta e voltamos para sua casa em Imbé. Ela voltou usando um colete
ortopédico e teria que usá-lo sempre que não estivesse deitada. Adaptamos uma
cadeira para banho e, por algumas semanas eu ia, todos os dias para ajudá-la
nessa ação de tomar banho e passar creme no corpo.
O cardiologista começou a atendê-la
em casa devido à grande dificuldade que ela tinha para ficar sentada por
algumas horas nas salas de espera.
Encontramos um dermatologista
que foi o primeiro a pedir exames específicos que identificaram que ela não
tinha alergia, mas uma doença autoimune. Começamos o tratamento e as medicações
aumentavam. Criamos um sistema de caixinhas que eu preparava todos os dias,
sempre para o dia seguinte. Assim, meu pai tinha mais facilidade em administrar
os medicamentos nos horários certos.
Meu pai se dedicou, inteiramente
aos cuidados com a mãe. Ele já vinha cuidando dela desde que foi diagnosticada
com arritmia, em 2017, mas intensificou neste período. Ele lavava as roupas,
fazia a comida, ministrava os remédios e passava a noite cuidando dela. Sempre
que ela se coçava, ele limpava a pele dela e passava o creme. Meu pai emagreceu
7 quilos nesse período, entre setembro e dezembro.
E minha mãe foi ficando mais
fraca, sua imunidade caiu muito. Estava tomando vitamina D, mas não conseguia
ficar muito tempo ao sol. Usar o colete era horrível para ela, caminhar a
cansava, ficar sentada na rua a congelava. Não sentia fome e não conseguia
mastigar alimentos sólidos.
O cardiologista já tinha prescrito
suplementos alimentares, minha cunhada nutricionista trouxe outros, iniciamos
com um estimulante de apetite, mas nada mais parecia fazer efeito.
No dia 16 de dezembro, uma
quarta-feira, meu pai e meu irmão Eraldo foram a Taquara resolver algumas
questões e eu fiquei com a minha mãe. Em geral, quando estávamos sozinhas ela se
portava melhor. Mas não foi assim nesse dia: ela não conseguia comer direito,
sentia-se desconfortável, desviando o olhar do meu. Ofereci o jornal para ela,
mas vi que ela só o folheava sem ler. Já há dias ela não se interessava mais em
ler as mensagens do grupo da família no WhatsApp. Perguntei por que ela não
aproveitava esses olhos que estavam enxergando tão bem e ela me disse: “Não
sei, acho que é preguiça”. Ela estava cansada, só queira ficar deitada. E a
gente não entendia bem esses sinais. Ou, quem sabe, não queríamos entender...
No dia 17 de dezembro o
cardiologista veio consultá-la em casa e meu pai pediu aos meus 2 irmãos que
moram em Taquara para virem acompanhar essa consulta. Pressentimentos...
Estávamos meu pai e meus 3
irmãos ao redor da mãe, que estava com 39,3º de febre, prostrada em sua cama. O
cardiologista a examinou e constatou uma infecção nos pulmões.
“Essa infeção não estava nos
nossos planos”, disse o doutor Christian. Prescreveu um antibiótico que deveria
ser ministrado, imediatamente e a cada 24 horas por 5 dias. Minha mãe passou a noite
gemendo ao expirar. Iuri e eu pernoitamos na casa dos meus pais para ajudarmos
caso fosse necessário interná-la. O cardiologista ficou de prontidão e nos
pediu para informá-lo sobre qualquer piora no quadro.
O dia 18 foi bem difícil, a
mãe não conseguia comer, gemia sempre e dizia que não tinha dor, mas coceira em
alguns pontos do corpo. À tardinha, meu marido mediu os sinais e constatamos
que a temperatura, a pressão e a oxigenação estavam muito baixas. Iuri mandou
mensagem ao doutor Christian que pediu um RX imediatamente. O único lugar com
RX naquele horário era a Unidade de Pronto Atendimento – UPA, de Tramandaí.
Iuri e eu a levamos e, por ser uma senhora de 85 anos de idade, com infecção
pulmonar, a internaram na observação COVID.
Todos os dias nós levávamos as
refeições, mas não podíamos entrar. As refeições retornavam quase intactas, mas
os diversos médicos plantonistas diziam que ela estava recebendo soro e que não
nos preocupássemos com o fato dela não comer. Não podiam liberá-la porque
tinham coletado material para o teste COVID e agora era preciso esperar o resultado.
Ela estava recebendo oxigênio, soro e os medicamentos que levamos.
Passamos o fim de semana,
sempre esperando notícias boas e, quem sabe, a possibilidade de transferência
da mãe para um hospital. Não havia vagas nos hospitais, cheios de pacientes com
suspeita ou confirmação de COVID-19.
Segunda-feira, 21 de dezembro,
o médico nos chamou para explicarmos, mais uma vez o caso da minha mãe. A nosso
pedido, ele autorizou alimentação enteral e meu irmão Ronaldo comprou os
suplementos para essa administração alimentar por sonda.
Em torno de meia-noite o
médico nos chamou e disse que a situação era muito delicada. Minha mãe só respirava
com auxílio do oxigênio e, na sua opinião, entubá-la só iria fazê-la sofrer ainda
mais.
Essa notícia foi como uma
bomba atirada contra nosso peito. O médico explicou que iria administrar um
sedativo para que ela não sofresse e que só teríamos que esperar que o organismo
dela reagisse, ou parasse. Ele tinha convicção de que minha mãe não tinha
COVID-19, então nos deixou vê-la, usando os equipamentos de segurança
necessários.
Estávamos lá, meu marido, eu e
meu irmão Ronaldo. Nós a vimos, falamos com ela, mas ela não nos viu. Talvez
nos tenha ouvido, quem sabe...
Em torno de 3h30min nos
avisaram que ela tinha falecido. Meu irmão providenciou o traslado do corpo
para ser sepultada em Taquara – sem velório, com caixão lacrado porque o
resultado do teste ainda não tinha retornado.
E assim se encerrou a vida da
minha mãezinha nesta terra. Nos despedimos dela no cemitério de Taquara, às
11h30min do dia 22 de dezembro de 2020, com a presença do meu pai, dos 4 filhos,
dos netos e outras pessoas que amaram dona Elly.
O resultado NEGATIVO do teste
COVID veio no dia 24 de dezembro, dois dias após a sua morte.
Mãe! Tu foste uma pessoa
maravilhosa, doce, sempre disposta a ajudar a quem quer que fosse. Quando meus
irmãos e eu éramos pequenos, tu nos cuidaste como bens preciosos enquanto o pai
estudava e se esforçava para nos dar mais qualidade de vida, melhores condições
de estudo e de desenvolvimento. Juntos, tu e o pai nos ensinaram os valores que
pautam nossas vidas e construíram uma família tão bonita!
Tu cuidaste dos meus filhos e
dos filhos dos meus irmãos para que nós pudéssemos desenvolver nossas carreiras
e sustentar nossas próprias famílias.
Tu criaste um mundo de amor e
alegria entre todas as pessoas que tiveram a felicidade e a graça de conviver
contigo.
Tu foste minha parceira em
vários eventos, gostavas dos chás, dos cafés e dos bingos que reuniam pessoas
ao redor de uma mesa.
Tu, mãe és o exemplo de
retidão, de bondade e de vida para todos nós, teus filhos, genro, noras e
netos.
É assim que vamos sempre
lembrar de ti, mãe amada!
Obrigada por teres aceitado
ser nossa mãe! Nós te amamos, eternamente! Fica em paz na alegria de estar com
nosso Pai Celestial, junto de Jesus e de Nossa Senhora!