Depois da morte
Conto número 1
Por Nara Maria Müller
Naquela
tarde cinzenta, a fina e fria chuva caía lá fora, Sara via as gotas escorrerem
pela vidraça da janela da sala de estar. Sala que hoje estava cheia de gente,
com muitas conversas e choros por todos os cantos. Apesar de todo aquele
movimento, Sara tinha a sensação de que a sala estava vazia. Andou em direção à
cozinha e lá então, o silêncio e o vazio pareciam atravessar seu coração ainda
inconformado pela partida de sua mãe.
Mãe
que fora sua melhor amiga, sua protetora durante 15 anos, desde que nascera até
esse triste dia da despedida. Sara ouvira dizer que agora sua mãe era um anjo
e, que lá do céu continuaria sua tarefa de cuidar, de amar e de interceder pela
sua felicidade. Mas também ouvira dizer que, antes de ir para o céu, a alma de
sua mãe teria que passar um tempo purgando seus pecados até ter o direito de se
encontrar com Nossa Senhora e com Jesus.
-
Que pecados seriam esses? - Pensava Sara em meio às lágrimas que insistiam em
brotar e escorrer sobre suas faces.
-
Minha mãezinha não tinha pecados, ela viveu para amar e cuidar de mim e sempre
foi boa com todo mundo! Não, ela não merece ficar sofrendo no purgatório,
certamente vai direto para junto de Deus.
Tia
Rosa, vestida de preto da cabeça aos pés e com os olhos marejados se aproximou
de Sara, acolhendo-a com um abraço afetuoso, dizendo: - Vem, querida, vamos
tentar comer alguma coisa. Você está sem comer desde ontem e “ela” não quer que
você fique doente. Você e eu precisamos ser fortes e vamos honrar a vida que a
Elena viveu enquanto habitou a terra.
Sara
não sentia fome, mas acompanhou a tia até a mesa da sala de jantar. Algumas
amigas tinham trazido frutas e preparado um lanche. Serviu um chá e beliscou
uns biscoitos. Mas seu coração estava apertado. Sara tinha a sensação de que
seu estômago estava fechado. Nada parecia suprir aquela ausência
gigante que sentia.
Perguntou,
então para a tia Rosa se ela realmente acreditava que a sua mãezinha podia
vê-la de onde estava agora. – Será mesmo que ela está no céu cuidando de mim?
De nós?
Tia
Rosa abraçou-a e confirmou essa teoria, com firmeza. No seu coração,
entretanto, Rosa também pensava se essa era mesmo a verdade.
-
Vamos rezar pela alma dela todos os dias, assim, caso ela ainda esteja a
caminho do céu, terá forças para chegar mais rápido - disse a tia Rosa. Sara
experimentava uma sensação de cansaço, seu corpo não tinha forças para reagir.
Acabou adormecendo nos braços da irmã mais velha de sua finada mãe.
Enquanto
Sara dormia, agitadamente, Rosa chorava a morte de sua irmã, tão precoce e tão
repentina. – Minha pobre Elena, por que teve que ser assim?
No
dia anterior, Elena levantara-se apressada, preparara o café da manhã e lavara
umas roupas. Sentindo um orgulho imenso pela filha, Elena viu Sara embarcar no
ônibus que a levaria para a escola. Pensou em ir ao supermercado, mas antes
disso, resolveu trocar de roupa. Escolheu um vestido laranja, para combinar com
o outono que acabara de começar. Colocou seu perfume predileto (jamais saía sem
seu cheiro de jasmim) e partiu em direção ao supermercado. No caminho de volta,
sua bicicleta foi brutalmente atingida por um automóvel e Elena foi levada ao
Pronto Socorro da cidade. Sara foi avisada na escola e uma professora a
acompanhou até o hospital.
-
Os ferimentos foram muito intensos e o estado dela é grave - disse um dos
médicos da equipe de atendimento. – Ainda estamos avaliando os danos e os
procedimentos que deverão e poderão ser aplicados ao caso.
-
Posso vê-la? - Perguntou Sara, trêmula e chorosa, com o coração parecendo
querer sair pela boca.
-
Por enquanto, não. A equipe médica está cuidando dela e faremos todo o possível
para salvar sua vida. Tão logo consigamos estabilizá-la, você poderá vê-la.
Uma
enfermeira trouxe um chá e tentou acalmar Sara. Tia Rosa já estava chegando,
ela morava na cidade vizinha, há uns 20 quilômetros de distância. A professora
ficara ao lado de Sara, no hospital. Nesse momento, Sara não poderia ficar
sozinha, precisava de muito apoio.
Enquanto
esperava, Sara pensou no seu pai, que abandonara a mãe logo que ficou grávida.
Sara nunca o conheceu. Por onde andaria? Será que não se sentiria culpado por
nunca ter dado qualquer apoio à Elena durante esses 15 anos? Se estivessem
juntos, talvez Elena pudesse ter seu carro e não teria sido atropelada com sua
bicicleta.
Os
pensamentos pareciam desconectados, de vez em quando parecia que Sara estava
sonhando. Em certos momentos, as lágrimas escorriam em grande volume e,
soluçando, às vezes gritava que queria ver sua mãe. Passada uma hora,
aproximadamente, um médico jovem se aproximou de Sara e de sua tia Rosa, que já
tinha chegado, e lhes deu a pior notícia que a menina já tinha recebido em sua
vida: - Fizemos o possível, mas os ferimentos foram muito profundos e em várias
partes do corpo. Sinto muito por essa perda.
Após
uma noite e uma manhã de velório, o corpo de Elena foi enterrado no cemitério
da cidade onde moravam. Muitas pessoas compareceram: as primas, os primos, a
tia Rosa e seu esposo Pedro, todos os professores, a diretora e colegas da
escola onde Sara estudava. Também os vizinhos, os paroquianos da
igreja que frequentavam e, é claro, o padre Juvenal, que presidiu os atos
fúnebres.
-
Deus acolha a alma da nossa irmã Elena, que deixa a filha Sara, a irmã Rosa,
cunhado Pedro e 7 sobrinhos - dizia o padre Juvenal. Sara ouvia as palavras,
mas não conseguia absorvê-las, tantos eram os pensamentos que lhe vinham à
mente.
-
Eu não acredito que isso aconteceu. Mãe, eu nem consegui dizer o quanto te amo!
Você não teve tempo para me ver formada, nem para refazer sua vida. Eu não vou
conseguir viver sem você, mãe! Esses eram os pensamentos de Sara que, por vezes
saíam-lhe boca a fora.
Depois
do enterro, era hora de voltar para casa e enfrentar aquele vazio. E a chuva
fria e fina que não cessava, tornava o dia ainda mais sombrio e devastador.
Já
escurecera quando Sara acordou, ainda nos braços da tia. – Tia Rosa, eu tive um
sonho tão lindo, com a minha mãe. Ela estava sorrindo, com seu vestido
predileto, cor-de-laranja. Ainda posso sentir seu abraço quentinho e sua voz me
dizendo que sabe o quanto eu a amo. Será que ela é mesmo um anjo?
Ambas
sentiram um perfume que conheciam muito bem. Rosa e Sara sorriram e choraram
abraçadas.
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